A DGE colocou à discussão pública o documento com o título em epígrafe, resultado do trabalho de um grupo coordenado por Guilherme de Oliveira Martins. Eis a minha contribuição para o debate:
PRINCÍPIOS
Os princípios
enunciados são demasiado gerais e não parece terem em conta o facto de se
dirigirem a 12 anos de escolaridade obrigatória. Se fossem só 9 anos que diferenças
haveria? Não basta enunciar uma "matriz de conhecimentos, capacidades e
atitudes", parece-me essencial apresentar metas mais específicas e
exigentes. Não basta defender que se deve fazer "a gestão flexível do
currículo, do trabalho conjunto dos professores sobre o currículo, do acesso e
participação dos alunos no seu próprio processo de formação e construção de
vida" é preciso apontar um perfil mais ativo e concreto. Será que este
enunciado seria diferente se fosse para o século XX? Provavelmente não. Onde
está aqui a especificidade do século XXI? Dizer que é preciso "conseguir
moldar-se a novos contextos e novas estruturas" é pouco. Que contextos
previsíveis? Que estruturas serão novas? Este não será certamente um perfil
para 100 anos, mas o que nós vemos hoje já nos deveria indicar algo de mais
concreto.
VISÃO
Mais uma vez a
visão aparece demasiado generalista e algo repetitiva: que diferença entre
"questionar criticamente a realidade" e "capaz de pensar critica
e autonomamente"? Uma demasiada generalidade corre o risco de se tornar
ineficaz e ser ignorada nos currículos concretos de cada disciplina. Deveria
ser possível apresentar uma visão mais concreta e focada, nomeadamente no que
diz respeito às áreas fundamentais. Estão enunciadas algumas, mas parece-me que
faltam três: Matemática, Computação e Educação Física. Deveria ser, por exemplo,
algo como: “Artes, as Humanidades, a Educação Física, a Matemática, a Ciência e
Tecnologia e a Computação”.
VALORES
Nesta secção,
muito século passado, falta pelo menos algo de decisivo no nosso século XXI de
acesso muito fácil à informação e a possibilidade de difusão rápida em redes
sociais criando espaço por exemplo para uma “invasão” de notícias falsas ou
distorcidas propositadamente:
Integridade na difusão da
informação: Respeitar a
autoria do um texto não o reproduzindo, total ou parcialmente, seja por que meio
for, sem a respetiva atribuição de autoria original; difundir apenas informação
segura, contribuindo para um melhor esclarecimento de todos.
COMPETÊNCIAS
CHAVE
Não me parece que
na secção “Linguagens e textos” o
enunciado seja coerente com o resto do documento, não promovendo de modo nenhum
um “ensino de métodos que permitam ver o contexto e
o conjunto, em lugar do conhecimento fragmentado”. Com efeito ao enunciar que “utilizar
de modo proficiente diferentes linguagens simbólicas associadas às línguas
(língua materna e línguas estrangeiras), à literatura, à música, às artes, às
tecnologias, à matemática e à ciência” está-se a separar implicitamente cada
disciplina nas suas “diferentes linguagens simbólicas associadas”. Ora, o
próprio programa PISA da OCDE promove uma visão integrada do conhecimento e o
enunciado do presente documento deveria refletir tal de forma muito clara.
Veja-se por exemplo o item “EDIFÍCIOS ALTOS” que consta dos itens libertos e
está classificado na área “Literacia de Leitura” (“Literacia de Leitura – itens
libertos 2009”, IAVE.). A interpretação do gráfico fornecido (pg 30) não é uma
competência de “literacia matemática” estrita mas sim de “literacia de leitura”.
Veja-se ainda o item liberto “LAGO CHADE” (“Literacia de Leitura – itens libertos
2000”, IAVE, pg 4.) cujo enunciado contém dois gráficos de tipos diferentes. O
enunciado desta competência no documento precisa de promover uma visão
integrada das abordagens curriculares.
Na secção “Raciocínio
e resolução de problemas” o enunciado é muito pobre, sendo que a expressão “processo
lógico que permite aceder à informação, interpretar experiências e produzir
conhecimento” fornece uma ideia muito redutora do que é a resolução de
problemas e dos possíveis raciocínios para a abordar, sendo muito próximo de um
mero “exercício” que se aprende por imitação e se repete sem questionar. No programa
PISA, e apenas num contexto dirigido a alunos de 15 anos, aparece algo de muito
mais rico tanto na componente “Resolução de Problemas” interdisciplinares em
2003 como em 2012 na componente “Creative Problem Solving”, como finalmente em
2015 na componente “Collaborative Problem Solving”. A característica
interdisciplinar (ou multidisciplinar) deveria ser enfatizada. No
documento “PISA 2003 Assessment Framework: Mathematics, Reading, Science andProblem Solving Knowledge and Skills (OECD, 2003)” aparece a seguinte definição
muito mais rica de competências na área da resolução de problemas: “… an
individual’s capacity to use cognitive processes to confront and resolve real,
cross-disciplinary situations where the solution path is not immediately
obvious and where the content areas or curricular areas that might be
applicable are not within a single subject area of mathematics, science or
reading ”. E em 2010
acrescenta-se ainda uma componente que tem a ver com a capacidade de investir (persistir)
na resolução de problemas por os reconhecer úteis para a sua vida de cidadão: “willingness
to engage with such situations in order to achieve one’s potential as a
constructive and reflective citizen”.
Na área “Saber
técnico e tecnologias” o enunciado é demasiado genérico cabendo praticamente
tudo na expressão “manipular e manusear materiais e instrumentos diversificados”.
Deve haver uma componente mais explícita, envolvendo competências matemáticas e
competências informáticas explícitas que devem ser dominadas por todos e que
devem estar presentes em todas as disciplinas. Não se compreende que tendo os alunos
acesso a um manancial de informação na internet não o saibam usar por não
saberem sequer navegar de forma inteligente. Por exemplo, no estudo “PISA2009 Results: Students On Line Digital Technologies and Performance (Volume VI)”
concluiu-se que “PISA results show that even when guidance on navigation is
explicit, significant numbers of students still cannot locate crucial pages.
The digital reading assessment offers powerful evidence that today’s
15-year-olds, the “digital natives”, do not automatically know how to operate effectively
in the digital environment, as has sometimes been claimed” (pg 19).
Na área “Consciência
e domínio do corpo” as competências enunciadas são extremamente redutoras. Numa
época em que se sabe que a atividade física regular é fundamental para a evolução
do ser humano, com repercussões ao nível do rendimento escolar (ver por exemplo "Alunos quefazem mais exercício físico têm melhores resultados escolares"),
o século XXI exige mais do que o enunciado estreito apresentado.
IMPLICAÇÕES
PRÁTICAS
Nas implicações
práticas falta o fundamental: como deve o currículo ser estruturado de modo a
contemplar os princípios enunciados?
COMENTÁRIO GERAL/OBSERVAÇÕES
Deve haver uma
componente relativa às competências matemáticas transversais muito mais forte,
como bem assinala António de Figueiredo: “competências matemáticas (...) porque
as matemáticas estão hoje na base de tudo quanto são algoritmos, e o mundo é
hoje mais gerido por algoritmos do que por pessoas (...) porque as matemáticas
estão hoje na base da análise maciça de dados, e grande parte das grandes decisões
deste mundo resultam da
análise maciça de dados (...) porque as competências matemáticas, na sua
natureza transversal, se fundem e confundem com as de computação (...) porque
esse casamento entre matemática e computação é o instrumento mais poderoso que
a Humanidade alguma vez inventou (...) porque a transversalização desse
casamento invade todos os domínios, incluindo as humanidades". (Que Competências para as Novas Gerações ? [II]
)
Já no texto “Competências
matemáticas no final da escolaridade obrigatória” (“A página da Educação”, nº
208, pg. 48)
chamava a atenção para as novas exigências matemáticas para o cidadão do século
XXI e penso que o documento deve refletir tal componente.